Cinco meninas-mulheres de vinte anos reúnem-se em uma mesa redonda. Os temas centrais discutidos naquela noite de uma possível quarta-feira transitavam entre atualizações das vidas amorosas, desejos pouco tangíveis e autodepreciações cômicas. As taças de vinho e os queijos acompanhavam os discursos até então levianos. No vai-e-vem de opiniões, uma delas rasga a circularidade da mesa com a afirmação: “Não vejo problema em realizar uma cirurgia plástica na vulva se a aparência dela causa incômodo.”
Não houve silêncio após a flecha ser lançada. Boa parte da mesa concordou que submeter a região íntima à mesa de cirurgia seria apenas um ato de autoaceitação. Quando levantada a bola da pornografia, houve um sonoro “não”. Segundo a maioria da mesa, os padrões de beleza distorcidos impostos pela indústria pornográfica não eram o motivo que levariam uma mulher ao centro cirúrgico.
O que estava sendo dito, em outras palavras, é que a percepção de ter uma vulva feia nascia na mulher que optou por realizar a cirurgia, e a vontade de torná-la bela era uma aspiração individual que não buscava aprovação externa.
Vamos com calma. Nesse enredo, o absurdo não mora na mulher que opta por operar a vulva, na menina-mulher que valida essa decisão, ou nas amigas que apoiam a busca por uma “vulva bonita”. O cerne da questão reside em todas acreditarem que este incômodo é parido nelas e por elas.
Esse fenômeno, na verdade, não é novo. Vou explicar um pouco da teoria que ajuda a entender essa cena. Aguenta firme, vou ser breve.
Os produtos culturais, como filmes, livros e propagandas, elegem o amor romântico como o tema central da vida das mulheres, atrelando seu valor social à conquista de um homem. O âmago da questão está em reconhecer que existe um mecanismo de controle social operando por meio dessas representações, fazendo com que muitas mulheres acreditem que seus desejos, vontades e comportamentos são formulados por elas mesmas. No entanto, eles são, na verdade, condicionados por uma sociedade patriarcal que define padrões de beleza e comportamento para manter as mulheres em um estado constante de insegurança e submissão1.
Esse mecanismo, que Foucault denominou “biopoder”, evidencia um tipo de controle constitutivo que leva os indivíduos a desejarem se comportar de determinada maneira, acreditando que isso é intrinsecamente bom ou desejável para si e para a sociedade, quando na verdade essas ações são condicionadas para atender o interesse de outro grupo. Um exemplo claro é a preocupação estética entre as mulheres, uma vez que seu valor social é muitas vezes condicionado à capacidade de ser escolhida por um homem. Para isso, ela deve se adequar a padrões de beleza considerados ideais. Valeska Zanello resume essa questão com a máxima “Os homens aprendem a amar muitas coisas e as mulheres aprendem a amar os homens”. Vale ressaltar que, dentro dessa problemática, existem complexidades relacionadas à raça e classe social, que trazem à tona outros aspectos de análise.
Se você leu até aqui, vamos adiante.
A crítica aos padrões de beleza tem ganhado espaço em diversas narrativas, e recentemente a diretora Coralie Fargeat nos serve um prato quente em sua nova ficção científica.
O filme acompanha o declínio da carreira da atriz Elizabeth Sparkle, interpretada por Demi Moore, devido ao seu envelhecimento. Após ser demitida de um programa de TV por ser considerada velha, ela enfrenta uma crise existencial. Em meio à desvalorização social causada por sua aparência, Elizabeth descobre 'The Substance', um produto que promete criar uma versão mais jovem dela mesma. No entanto, existem regras que devem ser seguidas: a matéria-prima e a versão mais jovem devem alternar sua presença no mundo a cada sete dias. Decidida a manter-se na indústria, a protagonista cede ao uso do produto. Caso a regra da alternância seja descumprida, efeitos colaterais irreversíveis ocorrerão. Juntas, elas enfrentam as consequências do vício pela juventude.
Não lembro a última vez que senti tanto desconforto diante da tela do cinema. Apesar de certas cenas envolverem transformações extremamente agonizantes, o incômodo está na semelhança com os procedimentos estéticos da vida fora da tela. O pré, o durante e o após do uso da “substância” conseguem abarcar todos os comportamentos da era do Ozempic, da harmonização facial e das cirurgias plásticas. A promessa é clara no filme e na vida de carne e osso: uma injeção promete perda de peso, esticar a pele, lábios carnudos, etc. Juventude líquida e imediata. No entanto, diferentemente do filme, os efeitos colaterais na vida real permanecem disfarçados.
É preciso coragem para ser apenas sua versão de si mesma e não sua “melhor versão”. Eu, por exemplo, não tive. Desde os treze anos, meu sonho era fazer uma cirurgia plástica no nariz, e eu jurava de pés juntos que esse seria o dia mais feliz da minha vida.
Obviamente não foi.
Tenho que admitir que tive uma melhora na minha autoestima, afinal, fazia mais de dez anos que eu sonhava em ter um nariz que se encaixasse no padrão de beleza. No entanto, é notável que com a popularização dos filtros e procedimentos minimamente invasivos, muitas mulheres passaram a se incomodar com características que antes sequer percebiam. Basta observar a necessidade de toda boca ser levemente aumentada, olhos levemente puxados, narizes com angulações perfeitas, cílios extremamente curvados, maxilares marcados e barrigas negativas.
Entende-se, então, que nossa melhor versão não comporta o charme do nariz “irregular”, olhos redondos, felizes pés de galinha ou lábios mais finos. Ou melhor, comporta. O discurso é que suas características serão mantidas, porém com um “toque sutil” das características de um padrão de beleza excludente e inalcançável. Será que alguma de nós é vista como irretocável? Me parece que todas nós, sem exceções, precisamos ter algo realçado ou corrigido. E aqui mora o perigo, nunca podemos estar satisfeitas, ou pelo menos não por mais de três meses.
Essa insatisfação tem crescido exponencialmente. Nos últimos dez anos, houve um aumento de 141% nos procedimentos realizados por adolescentes de 13 a 18 anos, e somente em 2022 registramos um aumento de 360% na busca por procedimentos estéticos em comparação com 2021. Além disso, o Brasil é o líder global em cirurgias estéticas em jovens. Esses dados já apontam para uma tendência preocupante, a qual é agravada quando entendemos que o Brasil ocupa a 130ª posição entre 146 países no Índice Global de Desigualdade de Gênero. Não, isso não é uma coincidência. Todos esses indicativos conversam entre si.
Para além dos números, lembro-me de uma vez em que uma italiana, espantada, me perguntou se era verdade que quase todas as mulheres brasileiras nascidas com pouco busto colocavam silicone. Com um sorriso amarelo, a resposta foi sim.
Não estou aqui para demonizar os procedimentos estéticos, os profissionais que os realizam ou quem opta por fazê-los. A verdadeira questão é: para quem serve a nossa preocupação em ter a “melhor versão" do nosso rosto, seios, corpo ou vulva?
A cena final do filme de Fargeat é exacerbada, desconfortável e, para os desatentos, pode soar desnecessária. Durante os dez minutos finais, somos cobertos de sangue, desespero e terror. No entanto, a cada minuto que passava, eu me convencia de que aquilo era pouco.
A tela fica preta e minha agonia perpetua. Sentada ao meu lado estava minha amiga Lorena. Ela me olha e diz: “Esse sangue é todo nosso.”
Sim, é todo nosso.
A prateleira do amor: sobre mulheres homens e relações, Valeska Zanello.
sem palavras ❤️